25.11.01
Sete personagens à procura de mim.
Eu crio personagens, coloco-os nos meus romances, e faço com que digam certas coisas e se comportem de um certo modo. Como qualquer escritor. Como Ernesto Sábato. Como Henry Miller. Como Roberto Arlt e seus sete loucos. Como Robbe-Grillet. Eu crio esses personagens e procuro dar-lhes vida, torná-los verossímeis aos olhos do leitor, porque meu realismo ainda não é mágico. (A propósito, estou lendo Faulkner: "O som e a Fúria"). Junto a isso situações por quais passei, coisas que li no jornal de ontem, histórias que ouvi. Como qualquer escritor. Gosto de escrever na primeira pessoa do singular porque suponho que isso dá mais credibilidade à obra. Neste meu último livro, um romance, experimentei criar um personagem na terceira pessoa, fiz com que se parecesse comigo em certos aspectos, dei-lhe o nome de Paritosh e coloquei em sua boca palavras que eu gostaria de dizer. Fiz com que se comportasse de forma irreverente, livre, ousada e misteriosa. Faço inclusive com que os dois personagens, o narrador e Paritosh, conversem sobre vários assuntos e até discutam seus pontos de vista contrários. Chego a insinuar que se amam sexualmente. Não descrevi a cena erótica entre os dois porque, lamentavelmente, devido a preconceitos hindus trazidos da infância, ainda não tive relações desse tipo. Assim como nunca fumei maconha e um dia talvez me ressinta dessa falha. Pois, bem. Nesse meu romance, cujo título é Solidão a Mil, faço experiências literárias. Crio personagens, como já disse, invento histórias, minto bastante, e também coloco algumas verdades historicamente comprováveis. Como qualquer escritor. Misturo fatos com as versões que meus personagens têm dos mesmos fatos. Misturo reminiscências com desejos. Invento lembranças que tenho de verdade. Realizo fantasias que posso até mesmo já tê-las tido. Misturo ficção com história. Como qualquer escritor...
E agora vem um idiota metido à besta, autodenominado "o maior crítico literário de Jalalayvah", dizer-me que não devo “misturar ficção com biografia”. Vem exigir que eu não crie personagens que tenham qualidades parecidas com as que nosso pai tinha, porque “a imagem dele não pode ficar manchada para a posteridade”.
Tenha o santo paciência...
Se o infeliz lesse jornal, saberia que o vencedor do Booker Prize 2001 foi o australiano Peter Carey. Este escritor, além de misturar “ficção com biografia”, criou personagens “inspiradas” em outras do livro Grandes Esperanças, de Charles Dickens. Com o resultado dessa “mistura” produziu o livro “Jack Maggs”, e com ele ganhou um dos prêmios literários mais respeitados do mundo. Mais que o Nobel. Ou seja, se Peter Carey seguisse os conselhos do “maior crítico literário de Candahar” não teria provavelmente ganho o Booker Prize deste ano.
Se fosse um pouco mais esperto, já teria lido "Cem anos de Solidão", do Gabriel Garcia Marques. Ou "Conversa na Catedral". E já saberia que é comum escritores misturarem "ficção com memória". Mas o coitado nunca leu nada que preste. Aliás, no Afeganistão, especialmente em Jalalayvah, nem deve ter biblioteca...
A versão original do meu romance tinha mais de quinhentas páginas. Por solicitação da provável editora, precisei fazer cortes. Num dos capítulos retirados e guardados para uso futuro há coisas gravíssimas. Por exemplo: o pai do personagem principal estupra quatro filhas. Eu descrevo até o barulho da lâmina da faca raspando nos ossos do peito do pai agonizante, caído no quarto, os outros filhos ouvindo tudo, quietos, na sala. Mostro todo o processo psicológico da geração do ódio ao pai que os filhos passam a ter após a descoberta das violências sexuais que o bruto cometia contra as próprias filhas. O filho que o mata tem dezoito anos e trabalha num armazém de subúrbio. Escreve poesias enquanto vende mortadela. Vejam bem: se eu tivesse deixado no romance esse capítulo, meu irmão talvez entrasse com queixa-crime na Justiça de Nova Delhi por calúnia póstuma, injúria póstuma e difamação póstuma. E talvez começasse a dizer a todo mundo que eu, Paritosh Keval, estou “mentindo a respeito do nosso pai”. Que “estou manchando a honra do nosso pai”. Mal sabe o infeliz que esse fato realmente aconteceu em nossa cidade, e a história me foi contada por Mullah Nasrudin, que era amigo do rapaz que matou o pai estuprador. Nasrudin até chegou a instruir o “assassino” a fugir do flagrante policial.
Mas eu, hein, acho que vou deletar essa história. Ou publicá-la só depois que o imbecil morrer. Ou ficar inteligente... (O duro é que as duas coisas podem demorar muito...)
No meu livro anterior, Manual da Separação, publicado em 1998, escrevi que “o ciúme é a lepra do amor”. Gosto dessa metáfora. Neste último romance resolvi criar uma personagem a quem dei o nome de “Leprosa”. Coloquei nela tudo o que já vi de negativo em dezenas de mulheres ciumentas que já conheci ou namorei em toda a minha vida. Inclusive “qualidades” das ciumentas que vejo nos filmes ou leio nos livros. Peguei até detalhes de mulheres casadas com amigos e irmãos meus. Bati no liquidificador da criatividade e joguei tudo em cima da personagem chamada Leprosa. E devo ter sido tão competente na criação da personagem que o meu “crítico literário” acha que me refiro exclusivamente a uma namorada específica que tive, chamada Aurean. E me pergunta, com o dedo indicador em riste:
─ Por que você ficou tanto tempo com a Aurean, se ela era tão leprosa como você fala?.
Acho que o coitado está perdendo o juízo, vertiginosamente. Só falta ele me perguntar se a Leprosa descascava na cama toda noite, ou se lhe chegou a cair um pedaço dos lábios devido à hanseníase...
Também acho que, se um dia eu descrever uma cena homoerótica, e publicá-la, meu "maior crítico literário de Jalalayvah" vai sair gritando para todo mundo: “Além de comunista é mentiroso... além de comunista é mentiroso...” Acho que, se eu virasse gay, pra ele deveria ser a glória. Se eu fosse morar embaixo da ponte, uma glória ainda maior. Iria vibrar, o meu "crítico particular", talvez, se “descobrisse”, por exemplo, que um personagem do meu romance faz propostas indecorosas à esposa dele à beira do tanque. Maior alegria, suponho, ele terá se eu criar um personagem, talvez presidiário, que, além de rasgar a orelha da mãe a dentadas, bolinava toda tarde a própria filha de seis anos num fusquinha velho, ao lado da Praça Mahatma Ghandi. Tenho certeza de que ele pegaria o livro e iria correndo ao Juizado de Menores prestar queixa. Não sei de quem. Mas já escolhi até o nome da criança violentada: F.S.O.
Só para finalizar esta parte: no meu livro anterior eu disse que o pai do narrador perdeu o juízo lá no fundo do quintal da casa dele. Mandou plantar 360 pés de girassol e ficava o dia todo sentado num banquinho de madeira, vendo as plantas “girarem”. As plantas giravam porque ele bebia – foi a solução literária que encontrei para justificar a metáfora. Eu tenho que dar verossimilidade às minhas figuras. E o meu "crítico", baseado só nisso, diz que eu escrevi que “meu pai ficou louco”. Sim, claro, o “pai do personagem” ficou louco. Mas não o meu!
Aliás, o meu era lúcido ao extremo.
Não consigo entender o elevadíssimo grau de paranóia a que esse coitado chegou. Se ele tiver acesso aos meus outros livros, que ainda nem publiquei, ficará tão impressionado que suponho teremos de interná-lo num manicômio (no bom sentido). E já começo a me excitar com essa possibilidade. De escrever uma história, eu digo. E criar mais um personagem. Vou chamar o tio Jorah de irmão, vou descrever algumas passagens que a Hosanya me contou, misturar com notícias de jornal, visitar Franco da Rocha neste domingo, lembrar-me do sogro do Bhetus quebrando pratos com os próprios dentes à mesa do jantar, vou lembrar-me do carroceiro Joaquim, nosso avô alcoólatra, e de suas latinhas enferrujadas de massa de tomate, e pronto – está criado mais um personagem.
E – pronto! – meu "crítico particular" vai ler e ficar puto da vida outra vez.
E vai continuar reclamando.
Às vezes eu me refiro a ele como "o meu irmão". Por isso é que, quando as pessoas me perguntam por e-mail sobre “esse tal de meu irmão”, eu lhes respondo, simplesmente:
─ Meu irmão não existe: é só um personagem que eu criei.
(Meu romance estava precisando de um lunático....)
Como vocês vêem, eu invento personagens.
Como qualquer escritor.